Na polêmica da nudez no MAM, as duas facções em luta estão cegas

A linguagem da propaganda política é toda feita de slogans e chavões que não se destinam a descrever estados de coisas, mas a gerar efeitos emocionais diretos, quase que por reflexos condicionados, sem passar pela percepção do estado de coisas. Numa situação normal, essa linguagem é contrabalançada pela da análise política, que quebra o feitiço das palavras e tenta mostrar o que, por trás delas, está em jogo. Infelizmente, no Brasil, os jornalistas e intelectuais, em massa, se adaptaram gostosamente à missão de “agentes de transformação social”, na qual a análise objetiva só pode atrapalhar e tudo o que interessa é levar a plateia a identificar-se emocionalmente com este ou aquele grupo, amar e odiar, desejar e temer, aplaudir e apedrejar. A propaganda, em suma, tornou-se a única atividade intelectual concebível. O primeiro e mais óbvio resultado é que ninguém, nessa atmosfera, consegue distinguir entre os símbolos verbais e as forças sociais reais que eles em parte designam, em parte encobrem. Os episódios do Santander Cultural e do MAM-SP, por exemplo, opõem os adeptos dos “direitos das minorias” aos defensores da “família”. Nessa luta de slogans, os membros da primeira facção nem de longe percebem que a sua política “multicultural” só pode produzir, como resultado objetivo, a destruição de todas as resistências morais e culturais ao poder avassalador dos grupos bilionários que promovem a “transformação social” e desembocar no império absoluto do grande capital, que, como “esquerdistas” que imaginam ser, odeiam da boca para fora. Já os apóstolos da “família” apegam-se à defesa desse símbolo verbal, sem notar que quem está sendo ameaçado não é “a família” enquanto valor genérico, e sim algumas famílias, as da massa trabalhadora, enquanto as famílias dinásticas que promovem a destruição das primeiras se consolidam no patriarcalismo hierárquico estrito que é a raiz e fundamento do seu poder. A sociedade que o “multiculturalismo” anuncia não é a gandaia geral que o moralismo conservador tanto abomina e teme, mas uma sociedade de tipo romano em que só os ricos e poderosos têm o privilégio de possuir uma família estruturada, enquanto o povão se esfarela numa poeira de átomos soltos, sem pais nem mães, nem tradição, nem passado, nem referência –a massa de manobra ideal para os engenheiros sociais a soldo da elite bilionária. A guerra dos símbolos, assim, encobre a disputa entre forças sociais que permanecem invisíveis a ambas as facções militantes, ambas a serviço de objetivos que não são os delas e que transcendem seu horizonte de consciência. Um detalhe significativo, nos dois casos em questão, foi a dupla e complementar cegueira das facções em luta. A primeira incapaz de perguntar que interesse, afinal, os grandes bancos patrocinadores poderiam ter na sexualização prematura da criançada; a segunda ignorando solenemente a diferença entre a prática da pedofilia, ou a sua promoção ostensiva, e uma operação complexa e sutil de progressiva dessensibilização social, quase impossível de enquadrar criminalmente mas até mais perversa e maligna do que a pedofilia. O pedófilo, afinal, como o assassino de crianças no clássico de Fritz Lang “M, o Vampiro de Düsseldorf”, pode sempre alegar-se vítima de impulso incontrolável, ao passo que o engenheiro social, ao criar a campanha dessensibilizadora e atrair a massa de moralistas e conservadores para uma batalha judicial antecipadamente perdida, confere à premeditação requintes de astúcia demoníaca. * OLAVO DE CARVALHO é professor de filosofia, autor de “O Mínimo que Você Precisa Saber para Não ser um Idiota”.